Diziam que eu eraforreta, eu não tinha eradinheiro nenhum

Carlos Moedas, o Comissário Europeu Investigação, Ciência e Inovação celebrou esta semana o Dia da Europa em Portugal. Uma conversa a dois tempos, começando pela atualidade política e recuando até ao berço. Afinal, falamos da história de um europeísta convicto, nascido em Beja quatro anos antes do 25 de Abril, filho de um comunista e que assume que o programa Erasmus – para o qual conseguiu entrar depois de um murro na mesa de um professor do Instituto Superior Técnico («O sr. Moedas é de Beja, nunca viu o mundo e tem de ir ver o mundo!») lhe abriu as portas tanto da sua carreira como da formação enquanto pessoa.

Quão paradoxal é ter um país – do Parlamento ao Governo, passando pelo Presidente da República – contra a proposta de orçamento da Comissão Europeia, mas ter a imprensa internacional a dá-lo como maior vencedor desta proposta de quadro plurianual? Sabendo, claro, que os comissários representam pastas e não nacionalidades, como é que lida com o paradoxo? 

Há uma parte positiva e uma negativa. A parte positiva é que durante muito tempo se dizia que a Europa não colocava como prioridade a Ciência e a Inovação e agora são prioridades claras. E é isso que faz, depois de negociações que são muito complexas, com que seja o maior aumento de sempre na Ciência e na Inovação. Os detratores da Europa, tanto nos Estados Unidos como na Ásia, diziam: «A Europa está a perder caminho, já não investe o suficiente». E agora a Europa responde: «Não, nós estamos a investir 100 mil milhões na Ciência e na Inovação e ainda pomos mais 10 mil milhões só no Digital». Isto é um statement muito forte a nível internacional. Um programa de 100 mil milhões de euros em Ciência e Inovação simplesmente não existe em qualquer outra parte do mundo. Isso é a boa notícia. A má não é tanto um paradoxo… A má notícia é que a Europa, tendo menos um membro, tem de fazer alguma coisa a nível monetário. O Reino Unido correspondia, em geral, de 12 a 15 mil milhões por ano do Orçamento anual da UE. Quando esses 15 mil milhões desaparecem, algo acontece. E o quê? Os programas maiores têm uma redução. Quando olhamos para a Política Agrícola Comum [PAC] e para os fundos estruturais, eles representam 72% de todo o orçamento. Quando retiramos uma fatia, eles seriam sempre os mais afetados. Não se trata de uma má vontade da Europa… Trata-se um de facto: há menos dinheiro porque um dos grandes membros da União sai [o Reino Unido]. E isso não é nenhuma surpresa, já se sabia que iria acontecer. Quando falamos em cortes entre os 5 e os 7%, estamos a falar de cortes que são inferiores àquele que é o corte no orçamento no Reino Unido, houve um esforço nesse sentido. 

Não teme que a redução na Política de Coesão fortaleça os partidos de discurso mais populista e anti-europeu?

(pausa) Já vi tudo… Hoje há uma desconexão total entre a economia e a política. Se fosse assim, um país como a Polónia teria um discurso totalmente pró-europeu. Se olhar para os gráficos, a Polónia é o país que mais recebe em fundos estruturais e o Governo tem um discurso contra a Europa. Há uma desconexão muito grande entre essas duas realidades. Pôr mais dinheiro nos países não quer dizer que eles falem melhor da Europa. Isso é um problema porque não deveria ser assim. Alguma coisa estamos a fazer mal. 

Se o dinheiro não gera europeísmo, o que gera? 

A conexão entre a Europa e os cidadãos, que é o que se tem perdido. Faço uma comparação com o ‘block chain’, que veio retirar os intermediários da economia. É o que essa tecnologia veio fazer: já se faz uma economia de par a par. E o que nós tivemos muitos anos na Europa foi sempre intermediários: pomos dinheiro nos países mas havia sempre um intermediário, o país, empresas, bancos. As pessoas nunca sabiam que o dinheiro vinha da Europa. Quando visitei um instituto em Manchester, pago com quase 30 milhões de euros da UE, perguntei à pessoa que estava à entrada se sabia quem tinha pago, e ela disse-me que tinha sido «o mayor de Manchester». A partir daí, também percebemos melhor o Brexit… 

É populista dizer que agora que há menos dinheiro os primeiros a sofrer serão os mais países pobres?

Isso seria especulativo… Aquilo que foi aprovado no Colégio de Comissário não faz nenhuma divisão por país. O que dizemos é que com a saída de um membro vamos ter uma redução geral na PAC e nos fundos estruturais. Isso é uma realidade.

Gosto muito de política internacional e acho que faço um bom papel como político português na arena internacional

Mas não sendo uma alocação por país mas por áreas, há áreas que beneficiam mais facilmente país de maior capacidade económica…

Isso é mal comparado… Não podemos comparar 72% do Orçamento com a política da Ciência que eram 8% do Orçamento… Mesmo aumentando para 100 mil milhões a política da Inovação e da Ciência, continua a ser muito pequeno comparado com o resto do bolo. A redução que houve era inevitável porque eram as maiores políticas europeias [sendo maiores, sofrem mais]. Mas, para sermos claros, estou triste com isso? Estou. A política de fundos estruturais e a Política Agrícola são importantíssimas. Estou a tentar ter na parte da Ciência 10 mil milhões só para a Agricultura: digitalização, inovação, etc.. Mas isto é o resultado de 20 anos a dizer mal da Europa, de populistas e extremistas. As pessoas dizem que «ah, aconteceu», e aconteceu e é capaz de ser pior. As eleições de 2019, na volta, esperando eu que não, vão trazer mais populistas e extremistas. Não é só o Reino Unido. É toda uma série de países em que esse discurso e essa retórica funciona. Quando maior for esse discurso, menos dinheiro há… 

Mas quanto menos dinheiro houver não teremos mais desse discurso também? 

É uma espiral. Por um lado, é o efeito desses países todos dizerem «nós não pomos mais dinheiro», mas depois, se não se põe mais dinheiro, a Europa funciona pior. Um exemplo: a Guarda Costeira. Quando o presidente [da Comissão Europeia] disse para fazermos uma, o que é que esses países dizem? «Não! A soberania! Com uma guarda costeira europeia perdemos soberania!». Mas se não houve guarda costeira vamos ter mais problemas em relação à nossa costa.

Aceitaria ficar como comissário europeu? 

Isso não é uma questão que se ponha neste momento. A questão que se põe na minha vida é: o que é que quero fazer depois? Gosto muito de política internacional e acho que faço um bom papel como político português na arena internacional. Mas isso é uma questão que é muito cedo para se discutir, para se falar, para se pensar. Até porque eu posso querer, de certa forma, e penso muito nisso… a vida política não deve ser feita só de política ou só de privado. Estive muito mais anos na área privada e tenho algumas saudades dessa área porque se aprende imenso. Também tenho uma paixão pela área pública e agora fiz uns bons anos na área política. Tenho que ver com a família, comigo próprio… E depois, obviamente, não depende de mim. É uma decisão do primeiro-ministro de Portugal. De mim depende pensar nisso. Esta fase da minha vida é tão preenchida – no ano passado fiz mais de 60 viagens – que não tenho muito tempo para pensar no futuro, no que vou fazer, no que quero fazer. Estou totalmente metido nisto, no trabalho da Comissão, e gosto. Mas não sei… Não sei o que será esse futuro. E é uma coisa óptima: há uma parte que depende de mim, que é a minha escolha, mas grande parte não depende de mim. Vamos ver. 

Essa agenda tirou-lhe muito tempo familiar?

É essa a parte mais complicada. A maior parte dos meus colegas tem mais de 60 anos, filhos crescidos. Eu tenho muita dificuldade quando penso que os meus filhos estão a crescer e eu não estou com eles o tempo suficiente. Não sei se isso é bom ou mau para eles (risos).

Qual foi o pior momento do seu mandato?

A crise do ébola foi muito complicado de gerir. Precisávamos de mais dinheiro para chegar à primeira vacina do ébola e às vezes os programas europeus são tão fechados que tivemos muitas dificuldades. Isso foi um choque. Pensar que sou comissário mas não conseguia chegar a essa decisão. E lá fora perguntavam: «O que é que estão a fazer? Onde é que está a vacina?». Na altura, conseguimos desbloquear 100 milhões de euros e depois os privados meteram mais 100 milhões. Mas foi um momento difícil. Os atentados em Bruxelas foram um momento também difícil. Mas, no geral, os momentos não foram maus. É tão interessante uma pessoa estar no centro da Europa, ver como funciona…Os momentos mais difíceis também os fui esquecendo. Agora as discussões do Orçamento… Quando eu entrei para as negociações, o Orçamento que estava em cima da mesa era muito longe dos 100 mil milhões.

Muito longe?

Bastante longe… (risos). Depois houve ali uma luta, que foi definir com os meus colegas como é que eu conseguia chegar ao objetivo dos três dígitos: os 100 milhões. Nunca tinha havido um programa [na Inovação] de 3 dígitos. «Vocês têm de me ajudar a chegar aos três dígitos, como é que vamos fazer?». Um dos colegas que me ajudou muito foi o comissário da Agricultura, que, coitado, estava a sofrer bem mais do que eu mas achava que devia ajudar porque não lhe fazia grande diferença [a nível orçamental]. Mas fazia uma grande diferença para mim… Esse é um pouco o legado que se pode deixar: um programa para a Ciência de que me orgulhe. A minha parte está feita. Agora é esperar que o Parlamento Europeu e os países cumpram a missão deles. Tenho otimismo em relação a isso, mas nunca se sabe… Acho que terei o apoio do Parlamento, mas o apoio que é mais difícil é ter a unanimidade nos 28 – neste caso, os 27… 

Vamos agora recuar quase 48 anos… 

(risos) 

Nasceu em pleno verão alentejano, em agosto de 1970. Consegue traçar o retrato de Beja nesse ano?

Não sei… são memórias um bocadinho a preto e branco. Imagine uma cidade pequena, em que o meu pai era jornalista mas não podia dizer tudo o que queria. Há uma imagem: o meu pai recebia muitas ameaças e ainda tenho lá aquelas histórias todas, e um dia tem uma ameaça de morte e a minha mãe disse-lhe «então não saias de casa!» e ele diz «vou sair, porque se me quiserem matar mesmo matam, e ser hoje ou amanhã é igual». Havia uma grande tensão. O meu pai [que era militante do PCP] quase foi preso e eu era muito pequeno. Essas coisas ficam, são muito fortes. Por outro lado, é quase extraordinário porque esses talvez tenham sido os melhores anos do meu pai. É uma parte agridoce. A democracia desapontou-o. E tudo o que ele esperava que acontecesse não aconteceu. Os melhores anos lá em casa foram aqueles logo a seguir ao 25 de Abril. Mas nos anos 80 ele já não acreditava em nada… As minhas memórias começam aí com 5 anos, nas manifestações do 1.º de Maio a seguir à Revolução, lembro-me de ir com o meu pai a um dos primeiros comícios do PSD em Beja. Houve tiros e tivemos que nos esconder debaixo de um carro. 

Mas o seu pai também ia aos comícios do PSD?

Ia porque era jornalista. Não concordava com nada (risos). Ia para dizer mal! Só que me levou e eu gostei.

Se lhe pedir um exercício de memória qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça? 

Lembro-me do Álvaro Cunhal vir a Beja a um 1º de Maio. Eu vivia em frente a um parque de campismo e lembro-me de ir com o meu pai ver aquela figura. Era realmente impressionante, metia um respeito enorme. O mundo era muito diferente. Hoje em dia, o acesso à informação é completamente diferente. Mas um político naquela altura, sobretudo o Álvaro Cunhal, era um feito extraordinário ele entrar ali. 

São sobretudo memórias políticas, então…

São, muitas… Memórias menos políticas… Brincávamos muito na rua. Lembro-me de os meus pais não terem dinheiro para me comprar uma bicicleta e todos os meus amigos já tinham uma. Depois lá conseguiram [sorri]. Lembro-me dos primeiros computadores, dos primeiros jogos. 

“Quando cheguei a Paris foi a descoberta total. Mudou a minha vida, nunca tinha visto absolutamente nada. Falava o francês do liceu de Beja”

A tecnologia já o deixava fascinado?

Já, até porque os meus pais não tinham dinheiro para me comprar… Hoje os miúdos como têm tudo não têm o mesmo fascínio. 

Ia com o seu pai para a redação?

Muitas vezes. O meu avô chegou a trabalhar na sala das máquinas, que era assim uma sala industrial com uns aparelhos em que se derretia o chumbo. Lembro-me muito bem disso. Depois, o chumbo era deitado numas formas e essas formas tinham cada frase do jornal. Depois, o meu pai punha a tinta em cima do chumbo e uma folha por cima, para se carregar e sair a impressão. Quando havia uma gralha, o meu pai corrigia e o trabalhador retirava o que estava mal e voltava a fazer. O meu avô trabalhava nessas máquinas e o meu pai era jornalista e começou muito jovem a escrever. 

Nunca pensou ser jornalista? 

Como o meu pai era jornalista… Houve várias fases e houve uma em que eu não queria ser nada como ele. Era aquela fase da rebeldia de ser jovem. Sinceramente, nunca pensei nisso. 

Nunca assinou nada no Diário do Alentejo?

Nunca, nem o meu pai permitiria isso. Ele era jornalista, era o jornal dele, não o vejo nada a deixar. Poderia, se eu quisesse ser jornalista, dizer-me para ir para outro jornal. Mas ali não acharia muita piada…

Como é que era na escola? 

Desde miúdo que percebi que, como fisicamente não me podia diferenciar, era melhor estudar [risos]. Lembro-me de os professores dizerem que eu era bom aluno aos meus pais e deu-me sempre imenso prazer estudar. Fui sempre seguindo aquilo que os bons alunos faziam, a carreira nas ciências, na matemática… Todos acabavam por ir para engenharia ou para medicina e eu fui influenciado por isso. Era uma coisa um bocadinho estúpida do ensino português, que já não é do vosso tempo. 

Como era o seu grupo de amigos?

Dava-me com muita gente. Um grande amigo era filho de um grande médico, um homem que me marcou muito, um dos primeiros portugueses a estudar a paralisia cerebral, o Artur Carvalhal. O filho [João] era um dos meus melhores amigos. Também tinha alguns amigos cujos pais eram latifundiários e que diziam mal do meu pai [risos].

Como lidava com isso?

A pior fase foi já nos anos 80, quando o meu pai decidiu pôr no jornal uma lista do que cada latifundiário tinha recebido dos primeiros fundos da CEE e os jipes que tinham comprado… 

Nunca perdeu um amigo por causa do seu pai?

Não, mas era complicado. Às vezes, as pessoas não separam muito bem a diferença entre aquilo que é a profissão de um pai e aquilo que os filhos são. 

Aconteceu com os seus filhos?

Agora não, mas quando estive no Governo de certeza que sofreram. E não deve ser assim: devemos proteger a vida privada e os nossos filhos. Tanto para um político como para um jornalista. É essencial numa sociedade democrática. 

Essa falta de privacidade na vida pública afasta-o de um regresso à política nacional? 

Não, essas memórias são fruto de algo que no futuro vai ser mais fácil as pessoas avaliarem. Acho que não eram coisas dirigidas à minha pessoa, mas à situação. As pessoas estavam a sofrer e estavam revoltadas. Agora, é muito mais difícil quando um filho ouve isso na rua e não faz essa separação porque é miúdo. Mesmo que saísse da vida mais pública isso estaria sempre presente. Foi uma altura [2011-2014] muito dura para toda a gente. Hoje, as pessoas reconhecem-me de uma maneira diferente porque a posição é bastante diferente – e até me conhecem melhor, porque na altura eu não podia ser verdadeiramente eu próprio. Estávamos a viver uma época muito dura, as medidas tinham que ser feitas. Naquela altura conheciam um tipo que estava atrás de uma folha de Excel, hoje já não é assim. 

Regressando a Beja: quando é que percebeu que não se revia nos ideais do seu pai? 

Nos anos 80, em que comecei um bocadinho a ler sobre o que se passava na União Soviética. Achava que havia ali qualquer coisa que não batia certo. Lembro-me de fazer-lhe perguntas sobre os Jogos Olímpicos de Moscovo e de sentir que ele tinha visto o que lhe queriam mostrar e não o filme todo. Tivemos discussões muito engraçadas porque ele era um homem muito inteligente e conseguia sempre dar-me a volta. Mas senti sempre que havia qualquer coisa no regime soviético que não funcionava – e mais tarde provou-se que, de facto, não funcionava. Foi um regime terrível para as pessoas. Começámos aí a ter as primeiras diferenças, mas ele respeitava-as. Nunca me disse para ser igual a ele, para pensar como ele. 

Nunca houve um choque frontal?

Não, nessa altura fiz uma escolha: apesar de já ter uma tendência para a parte política, nunca me quis meter-me na associação de estudantes nem na política, exatamente para não o deixar numa situação em que ele se sentisse mal. 

Foi pelo seu pai que não começou mais cedo na política?

Talvez hoje possa dizer que sim, que me afastei para não chocar com o meu pai. Mas isso já é quase psicanálise…

Vai estudar para o Instituto Superior Técnico, engenharia civil. Porquê? 

Como tinha notas muito boas, os professores diziam que eu tinha de ir para medicina. Um dia, houve um acidente ao lado de minha casa, o senhor ficou cheio de sangue e eu desmaiei. Como é que eu podia ir para médico se não conseguia ver sangue? [risos] O curso com melhor média a seguir era engenharia. Fui um bocadinho sem saber ao que ia. Não sabia o que era. 

Era um ambiente muito politizado?

Tinha muitas associações e muitas discussões, mas eu nunca me meti muito. Queria viajar.

Como é que foi a adaptação a Lisboa? 

Foi complicado. Os meus pais não tinham muito dinheiro, o meu pai já estava doente. Fui viver para um quarto de uma senhora terrível em Campo de Ourique. Não podia ter a luz acesa até tarde, não podia tomar banho todos os dias. Tive de me apoiar em amigos para estudar em casa deles. Lembro-me que umas amigas estavam num lar de freiras no Lumiar , só de raparigas, mas as freiras simpatizaram comigo e deixavam-me ir para lá. Ia às oito da manhã, ficava até às oito da noite. Não podia estudar em casa por causa da conta da luz. 

Era a austeridade… [risos]

Já na altura… [risos] Ia variando entre os amigos para não se fartarem muito de mim [mais risos].

E também saía à noite? Onde ia?

Sim, sim. Os meus amigos consideravam-me um bom aluno cool. Havia o Kremlin, nas escadinhas, não era? A Kapital, mas não me lembro se já se chamava assim. E o Frágil, no Bairro Alto, lembro-me perfeitamente. 

Foi barrado alguma vez à porta do Frágil?

Devo ter sido milhares de vezes [risos]. Às vezes tomo café numa pastelaria ao pé de minha casa e cruzo-me com a Margarida Martins. Já lhe disse que me deve ter barrado muitas vezes [mais risos]. As saídas dependiam sempre do dinheiro que tinha. O quarto custava seis contos, tinha de comer sempre nas cantinas. Ao almoço, no Técnico. À noite, na Faculdade de Ciências, que era ótima.

Nunca teve que cozinhar?

Isso era impossível. A senhoria não me deixava entrar na cozinha [risos]. Depois arranjei uma namorada que vivia ao pé de mim e comecei a ir lá a almoçar a casa. A mãe dela gostava de mim e alimentava-me [mais risos]. 

Foi numa visita de estudo a França que decidiu fazer o Erasmus. Quem lhe falou do programa?

Foi ali no Técnico. Um grupo de estudantes organizou uma viagem. Eu nunca tinha andado de avião. Vi que aquilo era tão barato que foi uma oportunidade para visitar a Aero Spaciale em Toulouse. Fui e encontrei um grupo que tinha sido, creio, do primeiro ano de Erasmus. Incentivaram-me muito a ir e eu entusiasmei-me. Comecei a falar com os professores daqui e eles não queriam nada que eu perdesse o 5º ano do Técnico. Todos diziam que não, que era uma chatice, até que um homem fabuloso – o Professor Quintela, um dos maiores professores de hidráulica – reuniu os professores todos e deu um murro na mesa e disse: «O sr. Moedas é de Beja, nunca viu o mundo e tem de ir ver o mundo!». E eu fui. Tenho muita pena de nunca lhe ter agradecido como queria antes de ter falecido. Mudou a minha vida. Nunca tinha visto absolutamente nada, nada, nada. De repente chego a Paris e foi a descoberta total. Marcou-me tanto. 

Desde miúdo que percebi que como fisicamente não me podia diferenciar era melhor estudar

Já falava francês ou aprendeu lá?

Falava o francês do liceu de Beja com pronúncia alentejana (risos). Estar num país em que percebemos mais ou o menos o que nos dizem e não conseguir comunicar… [Nessa altura] pensava nos emigrantes que saíram de Portugal e como aquilo era difícil, chegar a um país e não falar a língua. Tornou-me uma pessoa diferente em termos de resiliência. Digo sempre aos meus filhos que ir estudar lá para fora não é pelo que se estuda, é por aquilo em que nos transforma. Hoje sou uma pessoa extremamente tolerante, estou sempre a tentar perceber o que os outros pensam. Quando me fazem uma crítica acho sempre que deve ter alguma verdade, ponho-me na pele do outro. Isso aprendi lá fora, consigo captar as coisas nos primeiros instantes de uma maneira muito diferente.

Consegue dar exemplos?

Por exemplo, numa reunião está uma pessoa italiana, uma alemã e uma eslovena. Sei que a pessoa italiana, seja homem ou mulher, me vai dar um ‘passou bem’ com alguma distância; se estiver uma portuguesa dou um beijinho e explico a seguir à alemã que dei um beijinho à portuguesa porque é costume, porque a alemã fica estarrecida – como é que se ele nunca a viu e vai cumprimentá-la com um beijinho? Numa negociação perceber as culturas funciona. Aprendi a captar rapidamente como é que as pessoas vão reagir. E isto porque cometi muitos erros – cheguei a França e…

Tentou dar beijinhos?

Lembro-me de estar numa mesa e uma americana ia sentar-se, achei que a cadeira estava longe, aproximo-a e toco-lhe nas costas. E ela vira-se para mim com uma violência e diz: «Don’t touch me!». E isso para uma americana é normal, pensou que eu lhe estava a tentar tocar quando eu estava a ser simpático. Ao trabalhar com diferentes culturas há que ter um cuidado enorme com o que se diz.

O Erasmus iniciou o seu romance com a Europa?

Sim. Não conheço ninguém que tenha feito Erasmus e que não tenha gostado. Depois acabei por ficar cinco anos em França e fui depois para os EUA. Mas foi o Erasmus que me lançou e ainda por cima não tinha um tostão, fui para lá e levava um cheque de 16 mil francos franceses [2.400 euros]. O meu pai estava muito doente, deixou o jornal e a minha mãe tinha começado a trabalhar como auxiliar num infantário para ajudar. O meu pai reformou-se com uma reforma baixíssima, eles não tinham dinheiro nenhum para me dar e eu tive que viver com aquele dinheiro. Mas fui muito feliz.

Chegou a trabalhar lá em algum lado ou conseguiu com esse curto orçamento gerir a vida?

Consegui, mas os meus amigos diziam que era muito forreta. Eu não era, simplesmente não tinha dinheiro (risos). Há uma diferença entre ser sovina e não ter dinheiro nenhum, mas fiquei com alguma fama. Alguns ainda me dizem: «Eras tão forreta!»

O seu pai morreu em 1993. Estava no Eramus?

Já tinha acabado, o meu pai morreu em novembro de 1993. Ficou com uma doença terrível, ficou alcoólico, uns sete ou oito anos antes. Essa foi realmente uma época dificílima da minha vida. Acho que nunca falei nisso porque nunca tive de falar, mas acho que é bom também falar para as pessoas saberem que estas doenças são terríveis. Tenho o maior respeito por ajudar pessoas que estejam nessa situação, seja de droga ou álcool. Infelizmente aqueles últimos anos do meu pai não foram anos em que tive grandes conversas com ele.

São doenças difíceis e transversais.

A toda a gente. A pessoa fica sempre com o remorso do que é que podia ter feito mais para ajudar, mas são doenças em que a própria pessoa tem que se ajudar a si própria e portanto nesses últimos tempos não sei… Acho que é das piores doenças para destruir uma família, seja a droga seja o álcool. E a família não sei se sofre tanto como eles, mas sofre muito. Foi um choque.

O alcoolismo já era visto como uma doença?

Infelizmente talvez não como é hoje. Não acho que o país estivesse de todo preparado para isto, para ajudar as pessoas, não havia estruturas, hospitais, métodos. Talvez houvesse para quem tivesse mais dinheiro. Foi uma fase difícil não só da minha vida e de toda a família mas de todas as pessoas que gostavam dele. Ele era uma figura do Alentejo.

Tem uma rua com o nome dele em Beja!

E acho que é bem merecida.

Vamos então falar do período em trabalhou a fazer esgotos e saneamentos em Paris, entre 1993 e 1998.

Uma fase bonita, esgotos e saneamento (risos).

Como foi parar a essa empresa?

Foi mais ou menos a meio do Erasmus. Íamos sempre a uma livraria ao pé da Sorbonne de um português comprar o Expresso, um de nós que tivesse dinheiro comprava – quase nunca era eu. Um dia havia um anúncio de uma empresa que procurava um jovem engenheiro. Pensei que não tinha nada a perder, mandei o currículo. Começo a trabalhar lá logo a seguir ao curso mas com um problema – é que havia o serviço militar obrigatório. Fiquei sempre convencido que iam acabar por não me chamar. Engano meu, porque chamavam todos os médicos e engenheiros e então lá fui para Tancos, que era a escola da engenharia, e para a Pontinha depois. Foi um choque brutal porque aquilo era duro fisicamente.

O serviço militar foi um revés na sua carreira ou tirou alguns ensinamentos interessantes?

Foi uma boa experiência. Vinham pessoas de todo o país e de todas as condições sociais. E depois também, no fundo, para alguém como eu que nunca tinha feito nada físico, também tinha uma parte de disciplina física que não era assim tão má como isso e aprendi a conhecer-me melhor a mim próprio. Se voltasse atrás, escolheria ir à tropa sem qualquer hesitação. 

Como é que vamos ter uma política que não seja só de cima para baixo?

E depois manteve alguma dessa disciplina física?

(risos) Tento, mas acho que não se revela. Às vezes vou correr ao pé do Tejo.

Está mais europeísta ou é como os teólogos que quanto mais estudam mais se afastam da religião?

(risos) Cada vez sou mais europeísta. Não há nenhum caminho para a Europa que não seja uma união cada vez mais forte entre os povos.

Uma união cada vez mais federal também?

Acho que no longo prazo sim, num horizonte a 50 anos. Acho que a Europa vai caminhar sempre para uma união que pode chegar a uma federação mas a uma federação diferente. Não será uma federação de estados mas uma federação de estados-nação, mas isso é muito longínquo. Agora temos de nos concentrar em ser uma Europa que resolve problemas comuns e que tem poderes fortes para resolver problemas que são impossíveis resolver de país a país. Sem isso nunca vamos lá chegar.

A Inteligência Artificial (IA) é uma das grandes apostas da sua pasta. Imagina-se no futuro a ser entrevistado por um robô?

Acho que estamos muito longe disso. A entrevista tem uma parte humana que um robô nunca conseguirá fazer. A Mariana está a ouvir e também a interpretar o que estou a dizer e o meu body language e isso nunca poderá ser feito pela IA. A grande beleza da IA é que nunca nos vai substituir mas pode ser um complemento extraordinário.

Vou ler-lhe uma passagem para ver se reconhece. «Depois de amanhã as coisas que deveriam amanhecer diferentes eram os homens…»

É do meu pai, não é? É um artigo do Vento Suão.

Só precisei de uma frase, mas aqui diz «nenhuma criança, tua vizinha, ou de muito longe, deveria ter fome ou frio nem os pais sem ganho suficiente de lhes dar pão». Independentemente das divergências, lembra-se desse mundo melhor que o seu pai queria e continua a achar que o que faz ajuda esse mundo a um dia acontecer?

Sim, acho que continuo a tentar lutar por esse mundo melhor todos os dias e talvez por isso me tenha interessado pela vida pública que era uma escolha que na altura não era racional. A vida pública talvez tenha sido esse chamamento para fazer alguma coisa pelos outros. Agora de uma forma menos idealista que era a do meu pai, que é tentar fazer aquilo que posso em cada sítio que posso de uma maneira razoável para ajudar a que esse mundo seja melhor. Mas acho que o mundo está melhor, também temos esta ideia um bocadinho errada. Julgo que foi há dois ou três anos que o Obama disse: se tivéssemos um qualquer ponto na história em que pudéssemos escolher para nascer, esse ponto era hoje, e as pessoas ficaram um bocado espantadas com esse discurso. Temos muitas crises, mas o ponto em que vivemos hoje… Tenho muita pena de não estar a nascer hoje, acho que os meus filhos vão ver coisas extraordinárias e únicas. Olhamos para o mundo há 70 anos e havia guerra na Europa, aliás, nunca tivemos um período tão longo sem guerra. Uma coisa engraçada que ele dizia é que até estamos, no fundo, mais inteligentes: se fizéssemos um teste de QI na década de 50 e o mesmo teste adaptado a hoje a média dessa altura seria globalmente de 100 e hoje seria 120. Estamos a evoluir sempre para melhor e não podemos ter esta coisa um bocadinho derrotista de dizer que tudo está pior. Não. Globalmente o mundo está melhor: as pessoas vivem mais tempo, vocês vão todos viver mais de 100 anos. Olho para o mundo assim e claro que as coisas que o meu pai escrevia eram muito bonitas e inspiram-me nesta caminhada.

O seu discurso no congresso do PSD foi muito aplaudido nas bancadas laterais, pelos militantes e observadores, mas dentro dos dirigentes, no meio, não teve o mesmo entusiasmo. O seu discurso, não sendo um que pretendia atiçar as massas, ainda assim cativou as pessoas que estavam só lá a assistir. Há um grande vácuo entre aquilo que estamos a discutir e pensar hoje, o que o seu orçamento vai fazer na Europa, aquilo que defende para o futuro e aquilo que o PSD hoje pensa e é. Tem noção desse vácuo?

Acho que não se pode definir ou dizer aquilo que o PSD é. Acho que o PSD tem muitas pessoas que pensam como eu e que olham para esse futuro e que eu próprio espero contribuir para o PSD de hoje com essa visão do futuro. Acho é que o mundo mudou de tal maneira que os partidos por definição são instituições do mundo físico e ainda se estão a adaptar a um mundo que é digital. E há sempre uma resistência nessa adaptação a esse mundo. O ser humano resiste. E a minha mensagem no congresso era um bocadinho a do que seria um PSD futuro nesse mundo digital. É óbvio que muita gente olha para aquilo como um discurso futurista. Mas o problema é que esse futuro já está aí. Talvez algumas pessoas tenham pensado «então mas o que é que ele está aqui a falar de blockchain e de democracia e isso tudo» no sentido digital da democracia. É talvez o que é preciso hoje na política. Acho que haverá cada vez mais pessoas dentro do PSD como eu que olham para isso e estamos aqui todos para ajudar a que este líder faça esse caminho e que olhe para esses temas futuros e é algo que nestes anos tem de ser construído não só no PSD mas em todos os partidos em geral.

Não desiste dessa missão de agregar para preencher esse vácuo.

Esse é um dos maiores desafios: como é que no mundo em que os jovens se afastaram da política, em que as pessoas acham que não confiam no sistema… Nós não podemos ir buscar esses jovens e toda essa parte da população que está fora com os mesmos métodos que utilizámos nos últimos 20 anos. Fazer um congresso em que todos estamos sentados a ouvir discursos uns a seguir aos outros, isso é o método do passado. O método de hoje é várias plataformas ao mesmo tempo a discutir diferentes temas, em que há pessoas que estão em salas a falar sobre o mundo digital… Os próprios congressos partidários vão ter que mudar para terem uma participação de todos aqueles que estão fora. Por exemplo, num congresso partidário aquilo que estava a dizer é que tem ao centro aqueles que estão ali, que são os delegados, e que depois há essas margens. Mas essas margens, que são militantes individuais ou pessoas que estão ali por interesse e cada vez são mais, é que são o desafio. Obviamente que num mundo digital isso pode acontecer mas as pessoas que estão naquele centro também não lhes apetece abrir espaço. Isso faz parte do ser humano e a nossa missão é encontrar maneiras para que as pessoas participem mais nessa vida partidária, mesmo sendo apenas simpatizantes. Como é que essas ideias nos chegam e depois são trabalhadas…

Perguntei-lhe no início sobre a próxima Comissão Europeia, respondeu com as eventuais saudades do setor privado. Deduzo daí que não tem eventuais saudades do PSD.

(risos) Gosto muito do PSD e por várias razões. Gosto do PSD porque é um partido em que nós realmente nos sentimos livres de pensar e um partido em que há muitas diferenças e em que as pessoas pensam de maneiras diferentes sobre vários temas. Isso é bom. Eu só poderia enquadrar-me num partido em que sentisse essa liberdade. Acho que o PSD é dos partidos em que a pessoa se sente mais livre por dentro. Havia muita gente, aliás, que dizia que nós tínhamos uma péssima comunicação porque cada um dizia a sua coisa. Mas acho que isso vem desse ADN da liberdade do PSD e o PSD realmente é um partido que tem gente que veio de todo o lado, um partido em que sempre me senti muito bem.

Quando fala em contribuir para o PSD de hoje significa que não estará distante da contribuição para o PSD de amanhã.

Estarei sempre ao lado de quem estiver a liderar o PSD e ajudar esse líder a continuar e a fazer e a falar sobre os temas da atualidade, seja na inovação seja na ciência ou noutros temas, mas ajudar, sobretudo, a mudar a maneira como fazemos política. Como é que vamos trazer mais pessoas para a política, como vamos ter uma política que não seja só de cima para baixo a dizer ‘vamos fazer isto e aquilo e temos estas ideias’, mas a construir essas ideias com as pessoas. Penso que a maior parte dos partidos ainda estão numa lógica muito top down – isto são ideias, vamos fazer isto, implementem. No mundo digital isso funciona ao contrário, mas tem que funcionar com regras. Também é muito bonito dizer ‘vamos agora à participação de todos e com todos’, mas tem que ser organizada. E como é que isso se faz? Quais são as tecnologias que nos podem ajudar nesse futuro para construir uma democracia mais participativa? Obviamente num mundo físico uma pessoa dava um voto a outra para poder representá-la. Mas hoje num mundo digital eu posso ter diferentes opiniões para diferentes pontos e posso querer dizer a esse meu representante que sobre aquele tema ele me representa ou não. Imagine que eu voto no PSD porque gosto de uma determinada posição, mas daqui a 20 ou 30 anos uma pessoa pode ter acesso a imediatamente dizer ao seu deputado a sua opinião sobre um tema.